quinta-feira, 10 de setembro de 2009

ENTREVISTA
Uma Entrevista com Eric J. Hobsbawm

por Margarida Maria Moura e Gerson Moura
Fonte: Revista Estudos Históricos (FGV) - Ano 1990


Eminente historiador britânico, um dos mais conhecidos no Brasil, o professor Eric J.Hobsbawm é o autor de uma vasta e complexa obra historiográfica, na qual as grandes sínteses sócio-político-culturais respondem ao mesmo tempo a exigências de rigor documental e a orientações metodológicas precisas. Definindo-se como historiador de formação marxista e dialogando permanentemente com a antropologia, a economia e a ciência política, entre outras ciências humanas, Eric Hobsbawm tem-se aproximado de temas como banditismo social, campesinato e política, teoria e método histórico e relações internacionais, com a mesma desenvoltura e erudição com que estuda as grandes revoluções liberais do século XIX na Europa.

Profundamente interessado na América Latina, o professor Hobsbawm tem vindo freqüentemente ao Brasil a convite de instituições acadêmicas para conhecer de perto nossos problemas e nossa história. Aposentado do Birkbeck College (Universidade de Londres), mas dando ainda parte do seu tempo à atividade acadêmica na New School for Social Research em Nova York, continua a produzir obras de inestimável valor, como o recente A era dos impérios, já traduzida para o português.

Nesta entrevista, concedida a Margarida Maria Moura e Gerson Moura, em fevereiro de 1989, ele conta a história de sua formação acadêmica e discute alguns problemas do campo historiográfico, particularmente a sempre instigante questão das relações história-ciências sociais.

Quando começou seu interesse pelo estudo da história?
Meu interesse pela história como disciplina acadêmica começou de fato na universidade, mas meu interesse pela história em geral começou antes, através de Marx. Quando eu estava na escola secundária em Berlim, antes de vir para a Inglaterra, já era politicamente consciente, e ouvi a seguinte advertência de meu professor: “Você não sabe nada, é bom começar a ler.” Foi o que fiz, lendo Engels, Marx e outros. Sem dúvida, a concepção materialista da história foi parte essencial da minha formação. Entretanto, o ensino da história na Alemanha era horrível, muito antiquado, e conseqüentemente não me interessou. Quando atingi as classes mais avançadas da minha Grammar School na Inglaterra, tive a sorte de ter um professor que era muito entusiasmado e descobriu que eu tinha jeito para a história. Ele me emprestou seus livros e sugeriu que eu me candidatasse a uma bolsa de estudos para Cambridge. Ganhei a bolsa, e já na universidade não decidi imediatamenteestudar história. No entanto, acabei chegando à conclusão de que os outros assuntos que eu queria estudar, poderia fazê-lo em caráter particular, ao passo que a história, da maneira como era ensinada nas universidades, era um campo que eu conhecia pouco e valia a pena investigar em detalhe. Foi assim que fiz uma graduação em história. Na universidade inglesa àquela época, ou seja, na década de 30, a história era uma disciplina muito especializada e se podia fazer uma graduação exclusivamente nessa matéria.

Quais eram as principais tendências do ensino e da pesquisa de história àquela época em Cambridge?
Naquela época não havia em Cambridge uma corrente dominante clara. Eu diria que havia o começo de uma revolta contra a concepção convencional de história na Inglaterra, a chamada interpretação “whig” da história, baseada na visão de que a história inglesa se desenvolveu gradualmente até os modernos triunfos da democracia e da liberdade. Havia muito poucos trabalhos de história européia ou história do ultramar. E de fato pareceu-me, tanto a mim quanto a outros jovens esquerdistas, que a história em Cambridge não despertava muito interesse, com exceção da história econômica. Por sorte a história econômica estava nas mãos de um acadêmico brilhante mas pouco confiável -, o falecido professor Michael Postan, um émigré russo que tinha sido algo radical na juventude. Embora fosse muito antimarxista, ele era o único em Cambridge que estava efetivamente informado não só sobre os escritos de Marx, da história marxista e da teoria social marxista na Rússia em que ele cresceu, como também sobre a tradição européia, a tradição alemã e particularmente a tradição da história econômica e social. Aprendemos muito com ele, e acho que é correto afirmar que o procuravam os jovens historiadores mais brilhantes. Além disso, aprendemos realmente muito uns com os outros. Tínhamos vários grupos de discussão e aprendemos muito com os jovens pesquisadores que estavam fazendo seus doutorados, alguns dos quais acabaram se tornando historiadores bastante respeitados. Em resumo, o que aconteceu conosco foi um programa de auto-educação numa universidade que punha à nossa disposição uma enorme quantidade de livros, periódicos e fontes históricas.

Além da história econômica, que outros campos da história o senhor estudou em Cambridge?
Estudamos também o que se chamava de história constitucional, quase uma história legal da Constituição e do sistema político britânico. E, é claro, estudamos muito da convencional história institucional e política da Europa.

Em que momento ocorreu uma mudança de direção nos estudos históricos na Inglaterra, no sentido do abandono da história convencional por um novo tipo de história?
Certamente isso não ocorreu antes da Segunda Guerra Mundial. Creio que houve uma geração de estudantes da minha idade que foi amplamente responsável pela mudança. Lembre-se que antes da guerra já estávamos interessados na história econômica, com o professor Postan. Já conhecíamos os Annales da França e já havíamos tido a oportunidade de ouvir Marc Bloch, que foi convidado para fazer uma conferência na Inglaterra - na época foi-nos dito que ele era o grande medievalista vivo. De fato, já tínhamos um horizonte mais largo do que o comum entre os historiadores estabelecidos. Pode-se dizer que a mudança principal ocorreu na década de 50, quando meus contemporâneos se tornaram pesquisadores e depois professores.

Poderia mencionar nomes e influências que ajudaram a promover essa mudança?
Posso mencionar pessoas como Lawrence Stone em Oxford. Paradoxalmente, a mudança veio um pouquinho mais cedo na história antiga, por razões que nunca compreendi muito bem. A história da Antiguidade Clássica, de Grécia e Roma, atraía sempre pessoas com os mais variados interesses sociais e, numa certa medida, até mesmo os marxistas. Em geral, desde a Segunda Guerra a principal cadeira de história antiga em Cambridge esteve nas mãos de historiadores sociais ou de historiadores bastante criativos. Antes da guerra, isto não ocorria. Penso em A. H. M. Jones e outros como ele. Uma grande parte da mudança deveu-se certamente a um grupo de historiadores marxistas, que, novamente, eram meus contemporâneos. Alguns um pouco mais velhos, outros um pouco mais moços, organizaram entre outras coisas uma revista histórica, Past and Present, que representava as novas tendências. Lançada na década de 50, Past and Present firmou-se como a revista mais importante ainda antes dos anos 60. A mudança também se beneficia. de tendências internacionais, porque depois da guerra o Congresso Internacional de História foi dominado por um certo período pelo grupo francês dos Annales. E através desse grupo, que colaborava com o professor Postan e outros, uma dimensão social e econômica nova foi introduzida mesmo na história ortodoxa, fato que todos aprovamos.

Poder-se-ia pensar em semelhanças no desenvolvimento da história social e da história econômica na Inglaterra e na França, no sentido de que esse desenvolvimento envolveu a colaboração entre historiadores marxistas e não-marxistas?
Há diferenças. Por exemplo, na França, os historiadores marxistas não desempenharam um grande papel, e muitos jovens brilhantes daquele tempo que estavam no Partido Comunista francês não tomaram parte como marxistas nas discussões que nós estávamos organizando. Nós não soubemos que eles eram marxistas ou comunistas, senão quando eles deixaram o Partido Comunista e tomaram rumos diferentes, tal como Le Roy Ladurie, François Furet e outros. Nossos contatos, como esquerda dos historiadores ingleses, foi muito mais com os Annales, e com o tipo de história francesa representada por Marc Bloch.

Na França, muitos intelectuais, historiadores inclusive, deixaram o Partido Comunista e mudaram suas abordagens históricas em decorrência das principais crises do movimento comunista no plano internacional. Foi assim também na Inglaterra?
Curiosamente isto não ocorreu na Inglaterra de um modo significativo. As crises políticas no movimento comunista levaram antigos historiadores comunistas a deixar o Partido Comunista, mas eles permaneceram na esquerda. A situação é bastante diversa da França, onde gente que tinha sido antes muito militante, às vezes stalinista, deixou o partido, e ao deixá-lo mudou sua ideologia e sua interpretação da história. Acho que se trata de uma situação diferente. Na Inglaterra, muito poucos dos que começaram como historiadores marxistas tornaram-se hoje historiadores anti-marxistas.

Considerando a velha e sempre renovada questão da relação entre história e ciências sociais, em sua opinião, que tipo de contribuições das ciências sociais podem ser úteis ao ofício do historiador?
Em princípio, sempre acreditei que a história está profundamente enraizada nas ciências sociais e pode se beneficiar enormemente delas. Penso que a história é uma disciplina que encontra explicações generalizantes. Desde o século XIX tem havido um debate acerbo, particularmente na Alemanha, entre os historiadores que acreditam que a história não pode generalizar, que só trata de fatos específicos, pessoas específicas, e portanto não se pode fazer afirmações amplas, e aqueles que desejam ver na história um padrão evolutivo ou outro qualquer. Neste debate, que se consubstanciou em acesas discussões entre os cientistas sociais na década de 90 do século passado, é claro que pessoas como eu estavam muito mais do lado dos generalizadores e dos cientistas sociais. Mas, por outro lado, os cientistas sociais muitas vezes não têm sido particularmente úteis aos historiadores pelo modo como se especializaram. Por exemplo, na década de 50, as principais linhas da ciência social estavam dominadas pela algo mecânica teoria da modernização, que começou nos Estados Unidos e não era de grande interesse para o historiador. Como modelo de mudança histórica é primitivo demais. Conseqüentemente, não havia muito o que fazer. Além disso, politicamente falando, esse modelo estava muito ligado à ideologia da guerra fria. Mas isto não é uma crítica à abordagem das ciências sociais em geral. Novamente, se olharmos a economia, veremos que há alguns tipos de economia que o historiador considera extremamente úteis, mesmo se distantes de Marx - por exemplo, a escola econômica que trabalha com o que parece ser uma mudança de longa duração (Shumpeter), ou com tudo aquilo que estaria ligado a realidades sociais. Pessoalmente, admiro pessoas como Arthur Lewis, o economista; ele é útil no estudo do desenvolvimento econômico. Por outro lado, uma grande parte da economia hoje em dia é altamente técnica, uma abordagem baseada em esquemas neoclássicos bastante estreitos e deliberadamente irrealistas. Um de meus colegas disse um dia que estudar o equilíbrio não é lá muito interessante para os historiadores porque estamos interessados em situações onde não há equilíbrio. Esta é a razão pela qual, em geral, não emergem da cliometrics* questões históricas interessantes.

A cliometrics parece ter ainda grande influência nos Estados Unidos.
Ela é importante e influente nos Estados Unidos, embora eu não deixe de ter a sensação de que não é tão forte quanto foi. Dizer isto não significa um ataque ao uso da tecnologia dos computadores ou de qualquer outra técnica quantitativa disponível. Estou dizendo, simplesmente, que estas coisas são métodos e não o conteúdo da teoria. E se voltarmos a olhar para a sociologia, veremos que há teses sociológicas que são sem dúvida muito valiosas para o historiador. Karl Marx é um exemplo óbvio, e Max Weber, outro. Quer se concorde, quer não, qualquer historiador que leia Max Weber vai achá-lo útil. Mas há também tipos de sociologia, como a da modernização, que não são particularmente úteis. Pessoalmente, sempre achei a escola da antropologia social a mais fecunda em me dar idéias, e outros historiadores ingleses concordam comigo. No entanto, é preciso dizer que há algumas tendências recentes nas ciências sociais e possivelmente até mesmo na filosofia das ciências sociais que são inaceitáveis, sobretudo a tendência a negar a existência de uma realidade objetiva, traduzindo tudo em termos subjetivos. Esta tendência parece estar ganhando terreno tanto na sociologia quanto na antropologia social. E devo dizer que, se não há diferença entre os fatos da história e a ficção, então não faz sentido ser historiador.

Poderíamos pensar também, além de idéias, em métodos e técnicas de pesquisa derivados das ciências sociais?
Estou afirmando que as ciências sociais podem prover idéias, podem fornecer modelos. O aspecto interessante é que a maioria dos modelos gerais de mudança histórica, de evolução histórica do mundo, não são de autoria de historiadores profissionais porque na maior parte os historiadores profissionais são especializados demais e ficam um pouco ansiosos de ter que sair de sua especialidade. Os modelos nasceram de figuras que não eram historiadores profissionais, mas cientistas sociais - aqueles que retrospectivamente tratamos de cientistas sociais, como Marx, ou que mais recentemente vêm da ciência política. Assim, penso que a criação de modelos é mais fácil para eles do que para os historiadores não-marxistas. Quanto à metodologia, é claro que de algum modo a metodologia da história é suigeneris, mas há muito pouco que pode ser dito sobre o assunto. O domínio da metodologia básica, da técnica de arquivo e de outras, é algo que não envolve nenhum problema especial.

No seu artigo “From social history to history of society”, o senhor sugere que o historiador deveria usar algumas técnicas que outras ciências sociais já desenvolveram, tais como procedimentos estatísticos, observação participante, entrevistas em profundidade e até mesmo métodos psicanalíticos.
Qualquer técnica que seja relevante para um trabalho deve ser tentada. Na antropologia, por exemplo, não creio que seja somente a observação participante que tem valor. O que achamos de valor na antropologia é o conceito de sociedade como um complexo interativo, por assim dizer, de instituições, valores e atividades, no qual tudo está interligado na tarefa de reprodução da sociedade da atual para a próxima geração. É pelo menos este problema da produção da sociedade que torna mais fácil à antropologia social influenciar um tipo de historiador que tem uma formação marxista como eu.

Falando em antropologia, alguns estudiosos têm mencionado o uso de conceitos tais como etnicidade, comunidade e cultura na história do trabalho como resultado do impacto da antropologia. Trata-se de uma avaliação correta?
O problema é saber se estamos falando de palavras ou de modelos. Não precisamos dos cientistas sociais para nos dizer o que é comunidade. Qualquer pessoa que estuda história agrária, por exemplo, a história do campesinato, sabe que a comunidade é certamente uma coisa muito importante naquelas áreas do mundo onde as vilas são muito fortemente organizadas. Então, a questão é se podemos avançar para além disto. Penso que há modelos provenientes de outras fontes que podem ser úteis; por exemplo, modelos para o estudo do campesinato. No geral, os historiadores econômicos e os historiadores sociais que estudam o problema do campesinato e as mudanças na sua participação na vida moderna têm aprendido muito com os cientistas sociais, tanto com os antropólogos sociais quanto com os pesquisadores de campo. Por outro lado, ao invés de ver a história como um parasita das ciências sociais ou de uma ciência social, devemos visualizar todas as ciências humanas com que voltadas para o mesmo tipo de questionamento a partir de ângulos diferentes. É hoje evidente que nomes das ciências sociais têm sido influenciados por historiadores que estão ou estiveram na mesma “freqüência”. Edward Thompson, por exemplo, e, em certa medida, eu próprio, temos sido lidos por sociólogos e antropólogos, do mesmo modo que nós os temos lido. Penso que não é só uma questão de aprender um com o outro, mas de se ligar às questões a partir do seu próprio ponto de vista.

Que tipo de problemas a história e as ciências sociais poderiam estudar em comum de um modo frutífero?
Parece-me que a questão está em formular o problema com o qual nos defrontamos. Do meu ponto de vista, há um problema geral com o qual a história e as várias ciências sociais devem se defrontar, a saber, o da evolução da sociedade global. Em primeiro lugar, como é que ocorre que a sociedade humana, que começa de fato com caçadores e coletores, acaba onde estamos hoje, numa sociedade de alta tecnologia. Em segundo lugar, como é que a evolução não se deu homogeneamente através do mundo, mas de uma maneira muito complicada, mais intensa em algumas partes do que em outras, e em determinado momento conquistando ou reconquistando o mundo a partir de uma base regional precisa. De uma perspectiva de longa duração, esta me parece ser a questão maior, ou ao menos uma grande questão que o historiador deve enfrentar. Em terceiro lugar, esta é também uma questão que antropólogos, sociólogos, economistas e muitos outros têm que enfrentar, na medida em que possamos concordar sobre qual é o problema. Na busca da resposta, poderão ser dadas contribuições de diferentes pontos de vista.

Um fato notável que hoje se observa na história social é o grau de especialização a que se chegou, com a institucionalização de campos e subcampos e a virtual ausência de contato desses campos e subcampos entre si. Como o senhor avalia esse problema?
A especialização crescente é em alguma medida uma função da profissionalização crescente, ou de uma academicização dos assuntos. Penso que esta é uma trilha negativa. Significa que novos pesquisadores precisam “publicar ou perecer”. Significa também que a melhor maneira de publicar e ficar conhecido é lançar um periódico novo. Vê-se que um certo número de periódicos novos lançados por determinados grupos são em parte autopropaganda, em parte propaganda de sua própria universidade e em parte outra ordem de coisas. É compreensível, mas não tem nada a ver com o avanço da historiografia. O segundo fator é obviamente que quanto mais pessoas há no campo, mais difícil fica para os mais jovens a descoberta de áreas nos estudos históricos que ainda não tenham sido trabalhados. Conseqüentemente, surge uma vez mais a tendência a desenvolver campos relativamente especializados de modo a transformá-los em campos maiores. Não acho que isto seja particularmente prejudicial, porque há uma seleção natural. Todos nós sabemos que enquanto há muitas centenas de periódicos, que podem crescer a uma taxa de cinqüenta ao ano, há de fato um certo número mais preeminente que todo o mundo lê, mais um ou dois de sua própria especialidade. Contudo, é verdade que uma especialização excessiva apresenta um problema de comunicação. Trata-se, talvez, de um problema menos agudo na história do que nas ciências naturais, em parte por que muito mais é publicado nas ciências naturais, e em parte porque se a maioria de nós está apta a ler um artigo das revistas históricas e entendê-lo, nas ciências naturais já é necessária a existência de periódicos sérios como The Scientific American, ou The New Scientist, que explicam “pedaços” de ciência a outros cientistas que os desconhecem.

De qualquer modo, haveria problemas nessa crescente especialização da história social, não?
Parece-me haver uma razão pela qual se deve ser mais critico em relação à especialização crescente na história social. Parece-me haver por trás da especialização dois conceitos completamente distintos de história social. Um conceito é o do estudo de aspectos particulares da vida; de algum modo há que fazer o estudo diacronicamente, mas em geral não é esta a ênfase do campo. Por exemplo, tomemos a história da comida ou a história da doença, ou os que estão interessados na história da infância; apenas isto. Mas haverá sempre infância, e haverá sempre comida... Na verdade, estas pessoas estudam alternativas àquelas partes da história que mudam, que se desenvolvem, que se expandem. O outro tipo de história social, que eu chamo de história da sociedade, é o que está interessado em saber como a sociedade muda, em saber como a sociedade veio a ser o que é, e no que difere do que aconteceu no passado. Há uma tendência de alguns periódicos da nova história social a se tornarem veículos de pesquisadores interessados num aspecto particular da vida humana, sem se proporem qualquer questão histórica séria. São periódicos de antiquário, revistas de colecionador, destinados àqueles que estão simplesmente interessados em ter mais um exemplo de, digamos, um caso de lesbianismo na Espanha do século XVII. São interessantes para as pessoas que se interessam por um aspecto particular em si mesmo; mas há que perguntar quão importante é isto para aqueles que não estão interessados no problema do lesbianismo na história. Este me parece um perigo, um grande perigo para a história social. É lógico que cada pequena parcela de pesquisa especializada pode ser articulada com a problemática ampla da mudança histórica. Deste modo, não estou dizendo que se trata de uma coisa completamente inútil, mas será que aqueles que estabelecem este campo específico pensam do modo como foi explicado acima? Ou será que o concebem como um campo para colecionar fatos interessantes e atraentes, fatos que interessam a um grupo específico, a um público específico de colecionadores?

Seria esta a principal tendência hoje em dia?
Não, não é. Há sempre um desenvolvimento duplo: há uma tendência à especialização crescente, mas ela é sempre contraposta pelo que chamamos de tendência à interdisciplinaridade. Na fronteira de cada área de especialização, há aquela área onde todos os campos se encontram e os temas interdisciplinares se comunicam.

Parece ser uma questão filosófica, a de definir que temas são relevantes, que temas não são relevantes. Há quinze anos no Brasil, muitos diriam que não era importante estudar o campesinato. Mas hoje...
É uma questão filosófica muito difícil, é verdade; e é também muito difícil descobrir por que um historiador ou um cientista social ficam subitamente atraídos pela abertura de uma área. Há aí um elemento de moda, sem dúvida. No entanto, acontece que de tempos em tempos certos temas começam a se tornar significativos. Acho que há razões históricas para isto. Uma das razões pelas quais a história do trabalho se desenvolveu tão rapidamente na Inglaterra e na maioria dos países a partir do final da década de 50 é precisamente a ocorrência de grandes mudanças na classe operária. E tanto os historiadores enquanto historiadores, como historiadores enquanto expressão da classe operária, tomaram consciência dessas mudanças. Alguns dos estudos consagrados mais antigos eram quase sempre autobiográficos, como os de Richard Hoggart e Raymond Williams, já que tratavam da transformação na vida, nos espaços de comunicação da classe trabalhadora e na família que os próprios autores haviam vivenciado. O começo da mudança, tanto quanto o declínio da classe operária tradicional nas indústrias tradicionais, foi o que atraiu a atenção dos pesquisadores. Acredito que o mesmo ocorreu com os estudos sobre o campesinato. Os estudos camponeses tornaram-se importantes no momento em que claramente o campesinato não era mais uma massa estável. Ela estava se movendo, estava migrando, estava desgastada, estava sendo expulsa, e foi nesta circunstancia que logicamente muitas pessoas começaram a se interessar pelo campesinato. Temos que distinguir aqui entre fazer julgamentos de valor político e julgamentos de valor acadêmico sobre um assunto. O que o papel político do campesinato é ou foi é uma coisa; outra coisa é o fato de que o campesinato está sendo pela primeira vez transformado de grande maioria da raça humana em um segmento específico. E é isto que está sendo estudado no seu conteúdo. Mais: é algo que projeta luz no contexto mais amplo das mudanças de longa duração na sociedade humana. Mas ainda assim, você está certa; por que razão escolhemos um assunto, é muito difícil saber. Seria muito interessante ver se existe algum modo objetivo de compreender por que escolher determinado assunto, por que em certos períodos encontramos historiadores e cientistas sociais bastante independentes convergindo para um campo particular. Não sou capaz de compreender isto completamente.

Como o senhor avaliaria a aplicação de seu conceito, algo polêmico, de “pré-político” ao estudo do campesinato hoje?
Eu não utilizaria mais este termo sem uma qualificação bastante cuidadosa. O que eu queria dizer não era que as pessoas não eram de nenhum modo políticas, mas que eram políticas antes da invenção da terminologia, do contexto moderno e do complexo institucional da política - o cenário moderno, o teatro moderno da política, o drama moderno da política. É algo que, em geral, não existiu até o final do século XVIII, até a era das grandes revoluções. Antes, é lógico, não é que não houvesse qualquer política. É que simplesmente a política operava de uma maneira diferente e, eu diria, muito freqüentemente de modo muito mais limitado, porque havia muito menos possibilidade de influenciar autoridades que tomavam decisões em larga escala. Nessa perspectiva, existe um sentido de mudança importante. Contudo, mesmo depois do desenvolvimento do moderno teatro da política, de seu cenário e de seus enredos, há uma série de processos, movimentos sociais e classes que num certo sentido representam os velhos enredos. Não estão ainda habituados a operar no novo modo, ainda pensam à moda antiga. Nesta medida, o conceito de pré-político persiste e mantém sua força. Parece-me claro, por exemplo, que hoje, no Irã, um grande número das massas de indivíduos organizados não pensa nos moldes do século XX. Mesmo que um de meus colegas tenha demonstrado claramente que o chamado fundamentalismo do aiatolá Khomeini repousa operacionalmente no conceito territorial do moderno Estado-Nação e no governo moderno, o qual não tem nada a ver com o Corão e com a situação no século VII, assim mesmo, um grande número não pensa nestes termos. Eles pensam nos mesmos termos em que seus bisavós ensinavam a pensar sobre questões sociais, sobre o modo de organizar a sociedade e sobre o que é e o que não é uma sociedade justa ou uma sociedade tolerável.

Nesse caso, “pré-político” significaria político de outro tipo?
Certamente. É neste sentido que estou tentando tornar claro o conceito. Já tentei esclarecê-lo em uma ou duas publicações, porque sei que o assunto e o próprio termo têm-se mostrado muito controversos.

Para encerrar a reflexão sobre história e ciências sociais, como o senhor avaliaria a utilidade de conceitos tais como ideologia, mentalidade e cultura, largamente utilizados nos escritos históricos?
Cultura é útil certamente; cultura no sentido antropológico, isto é, uma totalidade de idéias, sistemas de valores, formas de comportamento e outros aspectos. Mentalidade eu não acho particularmente útil, a não ser quando por exceção se aproxime do que o antropólogo chama de cultura, porque fora daí o termo me parece ser meramente descritivo. Seria preferível, como têm feito os antropólogos, tentar formar um sistema de pensamentos para ver como atividades e idéias específicas estão ligadas entre si, e com a sociedade onde têm suas raízes, e não dizer simplesmente “mentalidade”, pois nesse caso os riscos são os mesmos dos estudos tradicionais de folclore: “Isto é o tipo de coisa que o povo faz, que tal pessoa faz, não há necessidade de explicar mais.” Ora, o que eu acredito é que se precisa explicar mais. Por que as pessoas se comportam assim? Por que elas pensam desse modo? O que é que elas estão tentando pensar? E quais são as limitações do seu pensamento? Entre os indígenas dos Andes há um mito bastante conhecido, e que pode ter sido revivido posteriormente, sobre o possível retomo do Império. Por que é que tais coisas existem? Não é suficiente afirmar: aqui estão as esperanças dos índios que não esqueceram o Império Inca. Por que tais memórias, que devem ser tão remotas, ainda operam com eficácia, enquanto no México não há equivalente? O que significa exatamente, nos termos de um padrão geral de vida, ter idéias deste tipo? É algo parecido com a devoção de um santo local, que tem uma função definida - se você tem um problema específico para ser resolvido, você reza de uma maneira específica, faz sacrifício de uma maneira específica. Em que circunstancias surge isto? Dito de outro modo, como isto pode ser articulado com o que idealmente esperamos ser um sistema coerente de crenças e explicações do mundo? Como se ajusta, se adapta, e, se possível, muda o mundo? Quanto à ideologia, é, como foi, algo que se aplica às pessoas que formulam ideologias.

Finalmente, como o senhor vê o contraste entre um certo crescimento do marxismo nas universidades norte-americanas e a crise do marxismo da Europa Oriental?
Se eu não quisesse falar sério, poderia responder. “Você precisa viver no capitalísmo para encontrar uma ideologia anticapitalista...” Mas realmente o avanço do marxismo nas universidades americanas é um fato concreto, na história e nas outras humanidades, ainda que não em toda parte... É um subproduto da radicalização dos estudantes e intelectuais dos fins dos anos 60. Uma grande percentagem deles, após o declínio do movimento, foi para a universidade e lá se tornou atuante. Então, eu acho que essa geração radicalizada vem introduzindo ainda mais marxismo na universidade americana. Da mesma forma que, de certo modo, a minha própria geração, a dos anos 30 e 40, introduziu o marxismo na universidade inglesa, mas num grau bem menor. Acho que é isto o que está acontecendo, não sei se consigo encontrar outra explicação. Mas todas essas pessoas são atores relativamente jovens. Agora, quanto à crise do marxismo na Europa Oriental, é parte da crise dos regimes da Europa Oriental. Isso está ocorrendo agora porque durante muito tempo o marxismo foi a teologia oficial, e conseqüentemente o pensamento marxista original não tinha muita expressão. É uma coisa que temos de aceitar: o marxismo na Europa Oriental não tem sido eficiente nem competente.

Londres, 7 de fevereiro de 1989

* Cliometrics ou “história social-científica quantitativa”, designa uma técnica de análise histórica fundada na quantificação de dados empíricos. Seus defensores mais radicais consideram-na o método científico por excelência da análise histórica.

0 comentários:

Postar um comentário

About This Blog

Topo da Página